sábado, 5 de abril de 2014

Sobrevivência e cultura como ganchos de aventura: O caso dos gigantes do gelo


Qualquer um que já jogou em um cenário de sobrevivência, onde conseguir comida para a próxima refeição é mais importante do que salvar o reino, sabe como atender as necessidades básicas da vida e a competição pelos recursos podem ser uma grande fonte de aventuras. Mas já notou que raramente se pensa nisso na fantasia medieval tradicional?


A idade média foi uma época em que pragas nas colheitas eram uma tragédia, capaz de dizimar grande parte de uma população. Uma espada viking clássica podia custar doze bois ou quinze escravos, não só pelo trabalho do artífice, mas pela quantidade de metal de que era feita e a dificuldade de extrai-lo. Embora um grupo de aventureiros não tenda a se importar (nem deveria) com esse tipo de coisa, na hora de construir um cenário elas podem ser o ponto de partida para sagas imensas!


Lembre-se que grande parte dos costumes de um povo gira entorno do trabalho diário em busca da sobrevivência. Para o ser humano, base de qualquer raça fantástica,  eles são os mesmos desde os tempos das cavernas:


  • Nutrição (comida e água)

  • Defesa contra predadores e rivais

  • Proteção contra os elementos da natureza (chuva, sol, vento, neve...)

Refletir sobre como uma sociedade sobrevive, e a parte de sua cultura resultante disso, pode gerar diversos ganchos de aventura. 
 
Duvida? Vamos então a um exemplo, usando como modelo o gigante do gelo da ilustração abaixo:



Primeiro, vamos definir o ecossistema em que a comunidade vive. Não precisa fazer um mapa do lugar, pois você pode ir criando localidades à medida que a necessidade for surgindo, mas é bom ter uma ideia geral do clima e da vegetação com o qual os habitantes locais terão de se virar. No nosso caso, diremos que se trata de uma tundra, com várias rochas e vastidões cobertas de gelo, com as poucas plantas sendo arbustos rasteiros.


Agora, o número de indivíduos da comunidade. Embora ele possa ser restringido pela oferta de comida e outros fatores, recomendo definir isso primeiro, pois irá aguçar sua criatividade para gerar fontes de recursos para manter a população. E quanto mais diversas essas fontes, mais aventuras se poderão criar a partir delas.  Digamos que temos um clã importante de gigantes na nossa tundra, com mais de cinquenta guerreiros, além de mulheres e crianças, totalizando umas 120 cabeças (das grandes!) para alimentar.


Próximo passo, nutrição. Como estamos lidando com criaturas fantásticas, parece ser tentador resolver tudo com magia. Os gigantes poderiam simplesmente se alimentar do vento frio do ártico, que restaura suas forças por ser o fôlego de seu deus, Ymir. Ou mesmo suas peles azuladas teriam a capacidade de gerar força a partir do próprio frio. Nem um problema nisso. A questão aqui é fazer com que a necessidade de se nutrir, de retirar energia de alguma fonte exterior, exista. Porém, quanto mais difícil e trabalhoso se manter vivo for, mais isso influenciará o modo de vida daquele povo.


Gancho de Aventura: Por algum motivo, o vento norte esta deixando de soprar. Os gigantes de gelos estão ficando cada vez mais fracos enquanto os antigos vendavais viram brisas. Os anciões acreditam que Ymir se ofendeu de alguma forma, mas nenhum sacrifício é capaz de aplaca-lo.  Dizem que uma grande recompensa foi oferecida para qualquer um que descobrir como resolver o problema.
 

Mas, para deixar as coisas mais interessantes, faremos nosso clã precisar se alimentar a moda antiga: comendo. Mas o que? Novamente, tendemos a ser bonzinhos e fazer os caras comerem gelo. Mas digamos que eles sejam como nós, humanos, e precisem tirar a vida, em grande parte, de outros organismos vivos ou seus derivados. Caça, pesca, coleta, pecuária e agricultura são as formas básicas de se conseguir alimento. Pense naquilo que comemos e de onde vem, pesquise sobre culturas em clima e terreno parecido e seus hábitos alimentares e garanto que você logo encontrará maneiras de sustentar aquela população. Além disso, as fontes de comida geralmente também são fontes de matéria prima. Ovelhas, por exemplo, fornecem carne e leite, mas também a não menos importante lã.


Lembre-se que monstros e animais precisam comer, e muitas vezes diferentes espécies disputaram a mesma fonte de sustento, ou pior, terão nossa pobre comunidade como prato principal. O feitiço, porém, pode ir contra o feiticeiro, e um predador morto se tornar uma ótima refeição!


Agricultura em uma região de tundra seria extremamente difícil, ainda mais para sustentar uma criatura gigantesca. Assim, nosso clã exemplo se dedica sobretudo a caça. Isso gerou uma sociedade onde pais ensinam os filhos desde cedo a rastrear e a trabalhar em equipe. O status poderá ser medido pela eficiência na caçada, que também será vista como um treino para a guerra. Ritos de passagem podem ser necessários para ser aceito nas expedições, e troféus oriundos de grande presas abatidas enfeitaram os grandes guerreiros.


Digamos que manadas de mamutes vagam pela tundra, e nossos caçadores são expertos em acerta-los, arremessando grandes rochas em inteligentes emboscadas. Os mamutes fornecem carne, peles, marfim, couro e tendões, que os artesões usam para fabricar um sem número de objetos.


Gancho de Aventura: Com o aumento da demanda por marfim no sul, uma companhia de caçadores resolveu se instalar na tundra atrás dessa riqueza, mas tem entrando constantemente em conflito com os gigantes de gelo da região. Vários mercenários estão sendo contratados para garantir a proteção dos caçadores.


Outra fonte legal de matéria-prima é o mar. Digamos que nosso clã, além de caçar mamutes, vive perto de uma enseada, lar de morsas e focas. Essas, por sua vez, alimentam orcas, e os guerreiros costumam nadar ate os icebergs para capturar esses terríveis monstros com arpões e anzóis.




Gancho de Aventura: Um poderoso Kraken vem atacando os navios do sul. Dizem que a única coisa que pode mata-lo é o Arpão de Ziguindur, uma relíquia de um antigo chefe gigante do gelo, que o teria usada para combater uma orca de proporções titânicas. 


Perto deles também esta uma cadeia de montanhas, no alto do qual estão os ninhos dos pássaros rocas, imensas aves que se alimentam de mamutes e orcas, assim como gigantes ocasionais. Todo jovem que chega a idade correta deve roubar um ovo desses terríveis seres, e o manto do chefe é completamente enfeitado com suas penas.


Gancho de Aventura: O ovo do filho do chefe gigante chocou após ser capturado, o que é sinal de mal presságio para a tribo. O bebê pássaro deveria ser sacrificado, mas o adolescente ficou com pena e fugiu com o animal, encontrando os aventureiros. Agora uma grande caçada liderada por um pai irado terá lugar na tundra.


Podemos colocar tribos bárbaras humanas e orcs como concorrentes dos gigantes nesse ambiente hostil. Grandes ursos atrozes e manadas de lobos também poderiam ser oponentes perigosos, e um deles teria fornecido a pele da capa do nosso amigo lá encima. Mas o que os torna superiores a essas ameaças, além do tamanho, são seus machados, elmos e armaduras. Mas onde eles teriam conseguido tanto metal, e ainda a habilidade para forja-los?

Uma das opções seria o saque. Já que não se pode produzir, se toma de quem pode. Nosso clã faria constantes investidas contra os outros povos das tundra, e no verão inclusive desceria até as terras do sul para tomar os tesouros das fronteiras humanas. Isso os proveria de tecidos, alimentos, escravos, todo tipo de bens de consumo e inclusive armas e armaduras de metal. Infelizmente, a vantagem do tamanho se torna um inconveniente aqui, pois espadas humanas são menores que facas para nossos enormes guerreiros.

Gancho de aventura: Como o reino recebeu alarmes de uma nova incursão gigante, uma força tarefa esta se formando na fortaleza mais ao norte do pais. A rumores de que grupos de espiões estão sendo enviados a tundra para avaliar a força e o local da invasão.

Comércio pode ser a resposta. A grande maioria das sociedades, mesmo em mundos fantásticos, não consegue ser autossuficiente. Por isso as trocas entre comunidades são tão fundamentais. Esse pode ser o primeiro passo para começar a bolar outra comunidade. Que tal colocar um outro clã de gigantes, dessa vez do fogo, habitando o interior de um vulcão não muito longe da nossa enseada? Eles mineram metais no interior da terra e os moldam com habilidade no calor do magma. O que poderiam querer em troca? Comida, marfim, peles, escravos, produtos saqueados e uma aliança militar que garanta a paz. Temos a base para um acordo comercial.

Como se trata de duas raças belicosas, poderiam existir pequenas guerras de vez em quando. Esses conflitos seriam mais uma maneira de se conseguir objetos de metal para os gigantes de gelo, tirados dos inimigos mortos.

Gancho de aventura: Um comerciante tenta contratar os aventureiros para resgatar sua filha, aprisionada pelos gigantes do gelo que atacaram sua caravana. A tarefa, porém, não vai ser fácil, pois os dois clãs estão novamente em guerra e as batalhas de rochedos voadores estão de volta. 

Por último, precisamos pensar uma sede para nossa comunidade (ou não, já que não há problema em um grupo de nômades). Ela precisa ser relativamente próxima das suas fontes de alimento, oferecer proteção contra a intempéries, ser um refugio contra monstros e inimigos e não esta muito isolada de possíveis rotas úteis de comércio, além de sediar os encontros sociais, religiosos e políticos de seus habitantes.

Faremos nosso clã habitar uma série de cavernas expandidas, encravada em um grande paredão junto do mar. Formado por diversas covas de uso coletivo e algumas familiares, tem como centro o Salão do Caçador, onde são realizados os ritos aos deuses, as cerimonias de iniciação e os conselhos dos guerreiros. Conta ainda com armazéns de inverno (os gigantes resistem ao frio, suas provisões, não), postos de guarda na entrada, uma senzala para os escravos e uma grande câmera comunal. O ambiente é inteiramente decorado com peles, troféus, chifres e mandíbulas. É conhecida como a Cidadela de Penhasco Feroz, que também dá o nome ao clã.

Gancho de aventura: os anões estão cansados da ameaça dos gigantes e decidiram extermina-los. Um túnel foi cavado ate perto da cidadela, mas os escavadores precisam de alguém que plante uma gema mágica dentro dos salões de Penhasco Feroz, de modo a orientar o final do seu trabalho. 
    
Pronto! Não só esboçamos uma comunidade inteira, como toda uma região, com sua geografia, seus habitantes e seus conflitos. Além de sete ganchos de aventuras, e muitos outros mais podem ser pensados. E tudo a partir de uma reflexão de como uma população se alimentava, lutava contra os perigos da natureza e combatia seus inimigos. 

Esse método ainda serve para aguçar a criatividade quando estamos sem muitas ideias para a aventura em si, mas sabemos que queremos usar determinado tipo de ecossistema ou criatura, ou mesmo temos um modelo de cultura ("uma história sobre beduínos no deserto"). Também deixa as descrições muito mais vivas e lógicas, pois estão ligadas ao dia a dia do ambiente em questão.

Bom, espero que tenham gostado. Aguardando pelos comentários. Até a próxima! 



  

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