Qualquer um que já jogou em um
cenário de sobrevivência, onde conseguir comida para a próxima refeição é mais
importante do que salvar o reino, sabe como atender as necessidades básicas da
vida e a competição pelos recursos podem ser uma grande fonte de aventuras. Mas
já notou que raramente se pensa nisso na fantasia medieval tradicional?
A idade média foi uma época em que pragas nas
colheitas eram uma tragédia, capaz de dizimar grande parte de uma população. Uma
espada viking clássica podia custar doze bois ou quinze escravos, não só pelo
trabalho do artífice, mas pela quantidade de metal de que era feita e a
dificuldade de extrai-lo. Embora um grupo de aventureiros não tenda a se
importar (nem deveria) com esse tipo de coisa, na hora de construir um cenário
elas podem ser o ponto de partida para sagas imensas!
Lembre-se que grande parte dos
costumes de um povo gira entorno do trabalho diário em busca da sobrevivência.
Para o ser humano, base de qualquer raça fantástica, eles são os mesmos desde os tempos das cavernas:
- Nutrição (comida e água)
- Defesa contra predadores e rivais
- Proteção contra os elementos da natureza (chuva, sol, vento, neve...)
Refletir sobre
como uma sociedade sobrevive, e a parte de sua cultura resultante disso, pode
gerar diversos ganchos de aventura.
Duvida? Vamos então a um exemplo,
usando como modelo o gigante do gelo da ilustração abaixo:
Primeiro, vamos definir o
ecossistema em que a comunidade vive. Não precisa fazer um mapa do lugar, pois você pode ir criando localidades à medida que a necessidade for
surgindo, mas é bom ter uma ideia geral do clima e da vegetação com o qual os
habitantes locais terão de se virar. No nosso caso, diremos que se trata de uma
tundra, com várias rochas e vastidões cobertas de gelo, com as poucas plantas sendo arbustos rasteiros.
Agora, o número de indivíduos da
comunidade. Embora ele possa ser restringido pela oferta de comida e outros
fatores, recomendo definir isso primeiro, pois irá aguçar sua criatividade para
gerar fontes de recursos para manter a população. E quanto mais diversas essas fontes,
mais aventuras se poderão criar a partir delas. Digamos que temos um clã importante de gigantes na nossa tundra, com mais de cinquenta guerreiros, além de mulheres e
crianças, totalizando umas 120 cabeças (das grandes!) para alimentar.
Próximo passo, nutrição. Como
estamos lidando com criaturas fantásticas, parece ser tentador resolver tudo
com magia. Os gigantes poderiam simplesmente se alimentar do vento frio do
ártico, que restaura suas forças por ser o fôlego de seu deus, Ymir. Ou mesmo
suas peles azuladas teriam a capacidade de gerar força a partir do próprio
frio. Nem um problema nisso. A questão aqui é fazer com que a necessidade de se
nutrir, de retirar energia de alguma fonte exterior, exista. Porém, quanto mais
difícil e trabalhoso se manter vivo for, mais isso influenciará o modo de vida daquele
povo.
Gancho de Aventura: Por algum
motivo, o vento norte esta deixando de soprar. Os gigantes de gelos estão
ficando cada vez mais fracos enquanto os antigos vendavais viram brisas. Os
anciões acreditam que Ymir se ofendeu de alguma forma, mas nenhum sacrifício é
capaz de aplaca-lo. Dizem que uma grande
recompensa foi oferecida para qualquer um que descobrir como resolver o
problema.
Mas, para deixar as coisas mais interessantes, faremos nosso clã precisar se alimentar a moda antiga: comendo. Mas o
que? Novamente, tendemos a ser bonzinhos e fazer os caras comerem gelo. Mas
digamos que eles sejam como nós, humanos, e precisem tirar a vida, em grande
parte, de outros organismos vivos ou seus derivados. Caça, pesca, coleta,
pecuária e agricultura são as formas básicas de se conseguir alimento. Pense
naquilo que comemos e de onde vem, pesquise sobre culturas em clima e terreno
parecido e seus hábitos alimentares e garanto que você logo encontrará maneiras
de sustentar aquela população. Além disso, as fontes de comida geralmente
também são fontes de matéria prima. Ovelhas, por exemplo, fornecem carne e
leite, mas também a não menos importante lã.
Lembre-se que monstros e animais precisam
comer, e muitas vezes diferentes espécies disputaram a mesma fonte de sustento,
ou pior, terão nossa pobre comunidade como prato principal. O feitiço, porém,
pode ir contra o feiticeiro, e um predador morto se tornar uma ótima refeição!
Agricultura em uma região de
tundra seria extremamente difícil, ainda mais para sustentar uma criatura
gigantesca. Assim, nosso clã exemplo se dedica sobretudo a caça. Isso
gerou uma sociedade onde pais ensinam os filhos desde cedo a rastrear e a
trabalhar em equipe. O status poderá ser medido pela eficiência na caçada, que
também será vista como um treino para a guerra. Ritos de passagem podem ser
necessários para ser aceito nas expedições, e troféus oriundos de grande presas
abatidas enfeitaram os grandes guerreiros.
Digamos que manadas de mamutes
vagam pela tundra, e nossos caçadores são expertos em acerta-los, arremessando
grandes rochas em inteligentes emboscadas. Os mamutes fornecem carne, peles,
marfim, couro e tendões, que os artesões usam para fabricar um sem número de
objetos.
Gancho de Aventura: Com o
aumento da demanda por marfim no sul, uma companhia de caçadores resolveu se
instalar na tundra atrás dessa riqueza, mas tem entrando constantemente em
conflito com os gigantes de gelo da região. Vários mercenários estão sendo
contratados para garantir a proteção dos caçadores.
Outra fonte legal de
matéria-prima é o mar. Digamos que nosso clã, além de caçar mamutes, vive perto
de uma enseada, lar de morsas e focas. Essas, por sua vez, alimentam orcas, e os guerreiros costumam nadar ate os icebergs para capturar esses
terríveis monstros com arpões e anzóis.
Gancho de Aventura: Um
poderoso Kraken vem atacando os navios do sul. Dizem que a única coisa que pode
mata-lo é o Arpão de Ziguindur, uma relíquia de um antigo chefe gigante do gelo,
que o teria usada para combater uma orca de proporções titânicas.
Perto deles também esta uma
cadeia de montanhas, no alto do qual estão os ninhos dos pássaros rocas, imensas aves que se alimentam de mamutes e orcas, assim como gigantes ocasionais. Todo jovem que chega a
idade correta deve roubar um ovo desses terríveis seres, e o manto do chefe é
completamente enfeitado com suas penas.
Gancho de Aventura: O ovo do
filho do chefe gigante chocou após ser capturado, o que é sinal de mal
presságio para a tribo. O bebê pássaro deveria ser sacrificado, mas o
adolescente ficou com pena e fugiu com o animal, encontrando os aventureiros.
Agora uma grande caçada liderada por um pai irado terá lugar na tundra.
Podemos colocar tribos bárbaras
humanas e orcs como concorrentes dos gigantes nesse ambiente hostil. Grandes
ursos atrozes e manadas de lobos também poderiam ser oponentes perigosos, e um
deles teria fornecido a pele da capa do nosso amigo lá encima. Mas o que os
torna superiores a essas ameaças, além do tamanho, são seus machados, elmos e armaduras.
Mas onde eles teriam conseguido tanto metal, e ainda a habilidade para forja-los?
Uma das opções seria o saque. Já que não se pode produzir, se toma de quem pode. Nosso clã faria constantes investidas contra os outros povos das tundra, e no verão inclusive desceria até as terras do sul para tomar os tesouros das fronteiras humanas. Isso os proveria de tecidos, alimentos, escravos, todo tipo de bens de consumo e inclusive armas e armaduras de metal. Infelizmente, a vantagem do tamanho se torna um inconveniente aqui, pois espadas humanas são menores que facas para nossos enormes guerreiros.
Gancho de aventura: Como o reino recebeu alarmes de uma nova incursão gigante, uma força tarefa esta se formando na fortaleza mais ao norte do pais. A rumores de que grupos de espiões estão sendo enviados a tundra para avaliar a força e o local da invasão.
Comércio pode ser a resposta. A grande maioria das sociedades, mesmo em mundos fantásticos, não consegue ser autossuficiente. Por isso as trocas entre comunidades são tão fundamentais. Esse pode ser o primeiro passo para começar a bolar outra comunidade. Que tal colocar um outro clã de gigantes, dessa vez do fogo, habitando o interior de um vulcão não muito longe da nossa enseada? Eles mineram metais no interior da terra e os moldam com habilidade no calor do magma. O que poderiam querer em troca? Comida, marfim, peles, escravos, produtos saqueados e uma aliança militar que garanta a paz. Temos a base para um acordo comercial.
Como se trata de duas raças belicosas, poderiam existir pequenas guerras de vez em quando. Esses conflitos seriam mais uma maneira de se conseguir objetos de metal para os gigantes de gelo, tirados dos inimigos mortos.
Gancho de aventura: Um comerciante tenta contratar os aventureiros para resgatar sua filha, aprisionada pelos gigantes do gelo que atacaram sua caravana. A tarefa, porém, não vai ser fácil, pois os dois clãs estão novamente em guerra e as batalhas de rochedos voadores estão de volta.
Por último, precisamos pensar uma sede para nossa comunidade (ou não, já que não há problema em um grupo de nômades). Ela precisa ser relativamente próxima das suas fontes de alimento, oferecer proteção contra a intempéries, ser um refugio contra monstros e inimigos e não esta muito isolada de possíveis rotas úteis de comércio, além de sediar os encontros sociais, religiosos e políticos de seus habitantes.
Faremos nosso clã habitar uma série de cavernas expandidas, encravada em um grande paredão junto do mar. Formado por diversas covas de uso coletivo e algumas familiares, tem como centro o Salão do Caçador, onde são realizados os ritos aos deuses, as cerimonias de iniciação e os conselhos dos guerreiros. Conta ainda com armazéns de inverno (os gigantes resistem ao frio, suas provisões, não), postos de guarda na entrada, uma senzala para os escravos e uma grande câmera comunal. O ambiente é inteiramente decorado com peles, troféus, chifres e mandíbulas. É conhecida como a Cidadela de Penhasco Feroz, que também dá o nome ao clã.
Gancho de aventura: os anões estão cansados da ameaça dos gigantes e decidiram extermina-los. Um túnel foi cavado ate perto da cidadela, mas os escavadores precisam de alguém que plante uma gema mágica dentro dos salões de Penhasco Feroz, de modo a orientar o final do seu trabalho.
Pronto! Não só esboçamos uma comunidade inteira, como toda uma região, com sua geografia, seus habitantes e seus conflitos. Além de sete ganchos de aventuras, e muitos outros mais podem ser pensados. E tudo a partir de uma reflexão de como uma população se alimentava, lutava contra os perigos da natureza e combatia seus inimigos.
Esse método ainda serve para aguçar a criatividade quando estamos sem muitas ideias para a aventura em si, mas sabemos que queremos usar determinado tipo de ecossistema ou criatura, ou mesmo temos um modelo de cultura ("uma história sobre beduínos no deserto"). Também deixa as descrições muito mais vivas e lógicas, pois estão ligadas ao dia a dia do ambiente em questão.
Bom, espero que tenham gostado. Aguardando pelos comentários. Até a próxima!
Ótimo post, ideias excelentes.
ResponderExcluirmuito bom cara, apesar dos poucos blogs, estou gostando do blog
ResponderExcluirpoucos posts*
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